segunda-feira, 26 de julho de 2010

Escola, Poder e Disciplina Michel Foucault e a construção dos paradigmas escolares

Dra. Adriana Oliveira Lima (não deixe de citar esta fonte)

Ao acessar esta página, torne-se seguidor e sugira temas em Foucault que gostaria de saber e discutir.
Este texto teve por objetivo fazer avançar as discussões relativas ao poder e a escola que foram por nós introduzidas nos estudos dos processos de avaliação (Lima, 1992). Este estudo que iniciou como um estudo dos processos de avaliação mostrou-se bastante útil para a compreensão de como se constituem os fundamentos da educação de modelo tradicional, quais seus objetivos e como se sustenta no contexto da evolução social.

Após estudos paralelos, eminentemente filosóficos, onde discutíamos a origem e a função dos intelectuais terminamos por descobrir uma fonte rica de respostas sobre a origem das disciplinas (moral, regras, valores) escolares e suas funções na educação. Passamos então a fazer um estudo mais detalhado de Michel Foucault naquilo que pudesse explicar a escola e suas "tradições".

Assim, pretendemos aqui desvendar a escola por meio dos estudos de Michel Foucault sobre a origem e o sentido de dispositivos tão cotidianos da escola, como os enfileiramentos das carteiras, as chamadas, as seriações e classificações, o controle dos espaços e do tempo. Este texto visa ajudar na reflexão sobre os aspectos organizacionais da escola tradicional e sua sobrevivência nos dias de hoje como a casca da cobra deixada para trás... oca, vazia...

I - A descoberta do corpo e a instituição da docilidade e obediência


Algumas pesquisas já mostraram a relação negativa entre a escola e a criança/adolescente, mas bastaria a realidade empírica de convivência entre pais e filhos para provar o quanto crianças e jovens não gostam da escola.
Qualquer motivo é razão para não ir para a escola... No aniversário um dos presentes é poder faltar a aula.

Numa era complexa de tecnologia e informação, nos perguntamos como esta instituição chamada escola sobrevive sem qualquer transformação de seu modelo primitivo (escola tradicional - autoridade e disciplina)? No âmbito sociológico é comum explicar este fenômeno através do que se chamou “mecanismos de controle social”, ou mais precisamente, na linguagem de Althusser "aparelho ideológico do Estado" que fazem funcionar um ciclo reprodutivo no âmbito macro-estrutural. Em outras palavras, a escola funciona como um mecanismo para garantir a reprodução das condições de dominação social.

Entretanto este mecanismo de controle social não explica a sobrevivência do cotidiano da escola no que diz respeito a realização pedagógica (aprendizagem) assim como o conjunto de suas normas internas que continuam sendo executadas ainda que não tenham mais o sentido social que um dia tiveram! Os sistemas disciplinares da escola permanecem respondendo a uma época que já passou e não respondem as demandas das sociedades modernas.

Neste sentido é que buscamos os elementos intra-escolares, suas teias microssociológicas, seu funcionamento para, neste contexto, entender-lhe os mecanismos de sustentação e sobrevivência. Os mecanismos disciplinares constituem um dos parceiros nesta microssociologia que garante a reprodução, entre outras, do próprio poder disciplinar, fazendo os pais crerem que a escola é necessária para subordinar e adestrar a criança e o jovem a um sistema de submissão que controla e garante esta reprodução contínua do poder nas sociedades. As disciplinas, no âmbito da escola, são os mecanismos mais concretos da reprodução social.

Michel Foucault, em “Vigiar e Punir”, estuda os mecanismos da Disciplina em sua capilaridade, ou seja, o poder exercido sobre os corpos. Neste sentido, pode ser esclarecedor para a escola compreender as técnicas e mecanismos disciplinares que organizam o sistema poder-submissão em sua versão micro, do dia a dia, do corpo a corpo.

“... houve, durante a época clássica , uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”.

O poder em todas as sociedades, segundo Foucault, está fundamentalmente ligado ao corpo uma vez que é sobre ele que se impõem as obrigações, as limitações e as proibições. É, pois, na “redução materialista da alma e numa teoria geral do adestramento” que se instala e reina a noção de docilidade. É dócil o corpo que pode ser submetido, utilizado, transformado, aperfeiçoado em função do poder.

Os estudos de Michel Foucault mostram estes mecanismos capilares de poder que têm sua origem nos séculos XVII e XVIII. Estes mecanismos aparecem com a descoberta do corpo como objeto de arte, e o renascimento será o símbolo máximo desta descoberta, assim como do estudo do corpo enquanto anatomia e medicina . Foucault mostrará que houve também a descoberta do corpo como objeto transformável em eficiência e alvo de controle e produtividade. E este momento foi o que Foucault chamou de "momento das disciplinas" que consistia num conjunto de dispositivos de controle sobre os indivíduos. Desde então, tem-se apenas variado as técnicas e os dispositivos de submissão e controle sobre os corpos.

O que Foucault desvendou, descreveu e detalhou no estudo das prisões, hospícios, quartéis e escolas toma forma social e amplia-se em uma sofisticada e sutil tecnologia de submissão dos corpos, onde o tempo e o espaço são controlados por minuciosos dispositivos (controle dos movimentos, gestos, rapidez, tempo, manobras) e a vigilância aliada ao saber fecha um circuito de poder microssociológico. Este poder que se exerce sobre o corpo é ininterrupto (contínuo) chegando mesmo a instalar-se como coerção interna (introjeção dos mecanismos de autocoerção) e suas tecnologias (dispositivos) alcançam este feito através do que Foucault chamou DISCIPLINA, isto é, aquilo que conduz os corpos à relação docilidade-utilidade.

Os estudos de Foucault contribuem sobremaneira para a compreensão da evolução da idéia de "obediência", tão importante na escola, que teve origem neste momento em que se descobriu e se organizou o poder sobre os corpos e que em sua evolução constitui o imaginário das sociedades modernas. Este imaginário consiste de complexos mecanismos simbólicos (crenças, valores) que induzem comportamentos tanto individuais quanto coletivos não sendo, quase sempre, conscientes. A obediência está de tal forma introjetada nos indivíduos que a confissão aparece como parceira indissolúvel permitindo aos indivíduos o alívio necessário para manutenção da integridade física ou mental.

Mas, retomando nosso tema, como se deu a construção desta obediência no processo histórico? Na domesticidade escrava pode-se dizer que a obediência se inscrevia (inscreve-se) no controle sobre a operação do corpo, isto é, sobre as ações do corpo em função dos resultados produtivos, e a punição é o regulador da obediência. Na vassalagem, a obtenção do controle se fazia pela produção, isto é, o que importava era o resultado do 'trabalho dos corpos' e era nesta produção que se instalava o controle que, assim, não era direto sobre os corpos. De um outro ponto de vista, ainda medieval e constituindo um modelo próprio que se reproduz socialmente sob a inspiração dos modelos religiosos a obediência tem lugar e pode realizar-se, também, por meio da renúncia, ("renúncia monástica").

Ao contrário deste processo histórico, é na modernidade que Foucault vai encontrar a construção desta maquinaria de poder através do controle dos corpos e que ele chamou de anatomia política, isto é, o corpo para fazer não o que se quer, mas para operar como se quer. É a tecnologia da disciplina fabricando os corpos submissos pelo controle dos gestos, do tempo, dos espaços, das estratégias... É o aparecimento de uma nova dimensão do poder, do controle.

Esta anatomia política desenha-se aos poucos até alcançar um método geral "que está em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos, reestruturaram a organização militar”. A disciplina que Foucault mostrará é, pois, uma política do detalhe e é desta forma que se desenha uma microfísica do poder que vem evoluindo em técnicas cada vez mais sutis, sofisticadas, com aparente inocência, tomando o corpo social em sua quase totalidade. É assim, pois, no contexto disciplinar dos regulamentos minuciosos, do olhar das inspeções que o controle sobre o corpo toma forma nas escolas, quartéis, etc., esta é a microfísica do poder, a que nos dedicaremos a detalhar um pouco mais.

II - Disciplina e a arte das distribuições

É preciso agora esmiuçar esta tecnologia disciplinar em seus diferentes componentes para estudar-lhe como esta se insere na escola. Em primeiro lugar analisemos a organização e controle do "espaço", isto é, o quadriculamento celular dos espaços, onde perdura a idéia do enclausuramento na organização física e que se expressa por: “Cada indivíduo em seu lugar e, em cada lugar, um indivíduo”. A organização do espaço vai evitar as distribuições por grupos e decompor todas as aparições coletivas. A circulação difusa, sem grupamentos, permite saber onde e como encontrar os indivíduos. Preservar apenas as comunicações úteis (sic!) e interromper todas as demais. Este é um espaço analítico onde o quadriculamento permite a vigilância contínua e de conjunto, uma vez que o todo não se decompõe em grupos, mas em movimentos coletivos vigiados. Veja a marcha de alunos, soldados...

É a disposição dos corpos no espaço que permite o OLHAR, isto é, a vigilância. Assim é que encontramos nas escolas minuciosa organização dos espaços onde, por exemplo, os corredores entre carteiras que permitem o movimento contínuo, ainda que ele não se dê. As seriações são feitas distribuindo os corpos em carteiras por idade, conhecimento ou comportamento, colocando o indivíduo, assim, em espaços definidos por sua localização na série. Esta arquitetura funcional e hierárquica é mantida por esta disciplina organizada em “celas”, “fileiras” ou “lugares”.

Este modelo de disciplina dos espaços introjeta-se nos corpos e esta introjeção ganha prolongamento social que se expressa nas ações dos corpos, na vida cotidiana, produzindo as “arrumações” de todos os espaços que, em última instância define-se pelo poder pela visibilidade. A subordinação à vigilância contínua é reproduzida pela coerção interna do indivíduo, isto é, o próprio indivíduo coloca-se no espaço possível de vigilância, que é o lugar da submissão e reproduz esta distribuição sem que seja necessário, de fato, ser vigiado.

Em segundo lugar a "disciplina" organiza o tempo que consiste no controle e regulamentação sobre os ciclos da repetição. O ritmo em que é exercida a atividade torna-se mais importante que os horários propriamente ditos. Este ritmo da ação é imposto de fora sobre os corpos: “À última pancada do relógio, um aluno baterá o sino e, ao primeiro toque, os alunos se porão de joelhos, com os braços cruzados e os olhos baixos...”

A regularidade, o ritmo, “é proibido perder o tempo que é contado por Deus e pago pelos homens”. Poder-se-á dizer que os dias atuais apenas escondem o cinismo explícito, mantendo os rituais escolares bastante semelhantes: as campainhas, os ritmos de repetição da atividade, a cronometragem em função da submissão dos corpos. Igualmente à distribuição dos espaços, o controle sobre o tempo dos corpos permanece introjetado na realização social da vida cotidiana e em todos os setores, inclusive na vida “pessoal e íntima” dos corpos. O tempo que não é controlado pelo indivíduo, mas pelo poder, será sempre algo inexorável que lhe determina a ação. O tempo, assim, não é próprio, individual, mas coletivizado pelo sistema de controle e a ele subordinam-se os corpos dóceis.

Em terceiro lugar, compondo os mecanismos da disciplina, a Vigilância, que aparece como algo que deve ser contínua, ininterrupta, pois precisa ser vista pelos indivíduos que a ela estão expostos como contínua, perpétua, permanente, ainda que não esteja presente efetivamente; é necessário que não tenha limites, que penetre nos lugares mais recônditos, esteja presente em toda a extensão do espaço: ”Olhar invisível que deve impregnar quem é vigiado, de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem o olha”.

O poder sobre os corpos (docilidade), exercido por meio destes mecanismos, atinge o ápice da submissão quando o corpo não distingue mais entre si mesmo e o "olho" que o vigia ("olho do poder"). Os tabus, os preconceitos, as verdades morais, as religiões... produzem nos indivíduos as renúncias ao prazer tornando-os dóceis e prontos para a submissão. O palco sobre o qual caminha o professor, as fileiras que lhe dão acesso a todos os alunos, as portas com janelas em vidros por onde o supervisor pode olhar, as campainhas, os horários, as chamadas... produzem, na estrutura da escola, a constância necessária para submissão/controle que se interioriza e se estende na vida social dos indivíduos.

Por fim, um quarto dispositivo garante o controle disciplinar: a produção do saber, isto é, a disciplina produz saber. Este saber é produzido pelo registro contínuo do que se conhece dos indivíduos na "clausura" (ainda que simbólica como a escola), dos eventos e suas participações, em suma, do que o supervisor "vê" por meio da vigilância. Este conhecimento gera poder e gera poder porque é manipulado (eu sei algo sobre você). Em nossas sociedades a busca do anonimato cresce em função da libertação dos corpos do domínio deste saber. O caderno de anotação, a ficha secreta, a prova surpresa, a correção, a nota... o mistério do que o professor sabe sobre cada aluno constitui o mecanismo que, na escola, transforma o saber em poder.

Estas técnicas disciplinares (Espaço, Tempo, Vigilância e Saber) acrescidos de outras tantas técnicas sutis de aprisionamento são os instrumentos identificados por Michel Foucault para o adestramento, para a subordinação dos corpos. A educação vai desempenhar importante papel na organização, reprodução, submissão e produção destes "corpos dóceis" que culmina, no contexto social, na subordinação, na dominação e na alienação.

Foi neste contexto da modernidade, entre os séculos XVI e XVIII, que Foucault analisou o aparecimento concomitante destes dispositivos descritos e a conseqüente aparição da figura do "técnico", do "supervisor", daquele que olha, que vigia, que controla, que acumula saberes. É, pois, no contexto da vigilância que se inserem as primeiras definições da "figura" e do "papel" do supervisor. É consciente desta origem e seus desdobramentos contemporâneos que é necessário refletir novas funções, novo papel e uma nova articulação dos "saberes", elemento fundamental no contexto de uma era da informação, onde o conhecimento transforma-se mais e mais em riqueza.

A reorganização da escola passa, pois, não apenas pela mudança destes dispositivos de poder, mas, fundamentalmente, pela própria mudança das funções que lhe davam sustentação, ou seja, aquela da supervisão como vigilância e punição. É possível e necessária tal mudança. É possível porque nenhum poder é absoluto ou permanente. O poder é transitório e circular, o que permite a aparição de fissuras e de rupturas. É necessário por que se precisa repensar este modelo de escola tradicional que se funda em tão primitivos mecanismos de poder.

2 comentários:

João Henrique T.L.C disse...

Acredito que nao consegui captar toda a grandeza deste texto, mas talvez possa-o relacionar com uma coisa que passei recentemente como aluno.
Fui fazer uma prova de recuperacao de quimica e nao acho suficiente os espacos que vem na prova para fazer os calculo. Ja tinha comunicado isso algumas vezes a escola mas nunca fui atendido. Entao, enquanto a fiscal passava a lista para assinarmos, eu decidi pegar uma prova de sociologia, que usaria para fazer os calculos de quimica, e assinei na lista de quem iria fazer a prova de sociologia com o nome de um amigo, que acreditei que tinha ficado de recuperacao em sociologia. Conclusao: Esse "arrumadinho" foi descoberto pela direcao da escola. Na conversa que tive com os diretores, onde tentei explicar a situacao, me senti quase como um criminoso ou um delinquente, ja que estes colocaram que cometi um crime de falsidade ideologica e que burlei todas as leis para fazer minhas vontades, e isso era algo extremamente preocupante e necessitaria de uma punicao, que acabou nao havendo por me considerarem um bom aluno.
Nao sei se falei besteira, mas ee isso... Um abraco!

PEIXOO disse...

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